E porque já passei da idade de ainda ter ilusões sobre um mundo possível onde a ética seja a base do comportamento político, e sejam insignificantes os interesses individuais dos que governam, e impossíveis todos os conchavos que preservem o mando, o compadrio na gestão pública e a caça populista de votos indispensáveis para a manutenção do poder, recolho-me ao silêncio e à indiferença, ainda que me acusem de não ser esta a atitude mais conveniente para quem passou a vida acreditando em transformar o mundo, não num paraíso terrestre, não numa sociedade igualitária sob a égide de um capitalismo de Estado, não sob o domínio hegemônico de um partido único, mas numa comunidade em que a vida seja digna, o trabalho assegurado, a saúde cuidada, a educação e a cultura um direito, mas os avanços individuais dependentes do mérito.
E porque já passei da idade de manter as esperanças no aperfeiçoamento das instituições, particularmente no discernimento do executivo, na autenticidade da representação legislativa, na eficiência e rapidez do judiciário, recolho-me ao isolamento, permitindo-me apenas a querela inofensiva dos botecos, o papo irresponsável sobre amenidades, incluso o futebol e os últimos escândalos e roubalheiras da Nação, mas sem uma única palavra de comprometimento com qualquer facção, nenhuma opinião que não seja vaga, fluida, fugaz e fugidia.
E porque já passei da idade de me indagar sobre as razões da existência, a origem da vida e o que virá depois da morte, recolho-me à insignificância do ser humano diante do cosmos, certo de que o espírito, ou o que chamam de alma, é apenas a vitalidade que move o corpo, faz funcionar órgãos, estimula o encéfalo, permite o ato criador, desperta as emoções, provoca reações aos estímulos. Assim, perdida a vitalidade, o corpo é só matéria, razão bastante para que seja cremado e em cinzas se torne, pronto a adubar a terra, ou simplesmente ser lançado ao vento. Reduzido a ossos, o indivíduo perde a individualidade para ser apenas estatística. O que fica é o que fizemos, a obra, por mais humilde e despretensiosa que seja.
E porque já passei da idade de altercações virulentas, reafirmação de convicções arraigadas, crença em ideologias salvadoras, algumas das quais levaram, e ainda levam, ao extermínio de milhares, recolho-me à simplicidade de alguns, e apenas alguns, dos mandamentos naturais, bem como à inevitabilidade de princípios fundamentais, como os que prescrevem a liberdade, desde que não firam a de nenhum outro ser humano, os direitos humanos como sagrados, a justiça social como objetivo permanente.
E porque já passei da idade de satisfazer-me com a generosidade dos sonhos, recolho-me à realidade inexorável, desfrutando os pequenos, mas ainda possíveis, prazeres da convivência com a companheira de toda a vida, os amigos e consanguíneos, pois que é desta convivência que me vem ainda o alento, a alegria de estar vivo e a vontade de exercer o ofício de mal ou bem escrever.